Nossa insignificância relativa e importância absoluta
Navegando a simultaneidade de bilhões de vidas
Existe um momento, quase sempre inesperado, em que você está parado no semáforo ou esperando o elevador, e de repente percebe que cada pessoa que passa por você tem uma vida inteira acontecendo dentro dela. Uma vida com a mesma densidade, a mesma urgência, a mesma complexidade labiríntica que a sua. É como se fosse a primeira chave num molho cheio de outras chaves, cada uma abrindo portas para cantos inexplorados da nossa vida emocional.
Como se de repente você conseguisse ver através das peles alheias e descobrisse que cada corpo carrega um universo particular, repleto de memórias que só ele conhece, de medos que só ele nomeia, de alegrias que só ele sabe saborear.
O autor John Koenig chama isso de sonder - essa realização súbita e estonteante de que cada transeuntte tem uma vida tão vívida e complexa quanto a sua própria. Mas eles não conseguiram capturar na palavra a vertigem que isso provoca, essa sensação de tontura existencial quando você de repente se dá conta de que não é o centro gravitacional do universo, que sua história pessoal é apenas uma entre bilhões de outras histórias igualmente urgentes, igualmente importantes para quem as vive.
Sonder não é apenas um neologismo - é quase uma epifania linguística. Quando Koenig criou essa palavra em 2012, ele não imaginava que estava nomeando uma das experiências mais universais e, paradoxalmente, mais solitárias da condição humana. A palavra surgiu de suas próprias observações enquanto caminhava pelas ruas, observando janelas iluminadas e pessoas em movimento, cada uma carregando universos inteiros de experiências que ele jamais conheceria.
O conceito faz parte do Dicionário das Dores Obscuras, um projeto que Koenig iniciou como um blog em 2009 e que depois se transformou em livro. O dicionário é uma coleção de neologismos inventados para nomear sentimentos específicos que todos experimentamos mas para os quais não tínhamos palavras - aqueles estados emocionais que ficam na ponta da nossa língua, reconhecíveis mas inomeáveis.
Cada palavra de seu dicionário é uma tentativa de mapear os territórios inexplorados da experiência humana, de dar nome aos fantasmas que habitam nosso mundo interior. Sonder, dentro desse universo lexical, talvez seja uma das criações mais potentes justamente porque aponta pra fora de nós mesmos. Enquanto muitas palavras do dicionário descrevem solidões internas, esse efeito nos obriga a reconhecer que nossa solidão é compartilhada, que cada pessoa carrega consigo um dicionário particular de dores obscuras que nunca conseguiremos traduzir completamente.
A escolha fonética de sonder não foi acidental. Ele se inspirou na musicalidade alemã - uma língua conhecida por sua capacidade de criar palavras compostas que capturam conceitos complexos. Termos como "Fernweh" (saudade de lugares não visitados) e "Weltschmerz" (a dor do mundo) já demonstravam essa tradição germânica de nomear sentimentos profundos. "Sonder" reflete essas palavras, especialmente "besonder" (especial) e "wunder" (maravilha), criando uma familiaridade auditiva que faz a palavra soar antiga e nova ao mesmo tempo.
Essa semana me aconteceu algo como o efeito no supermercado. Eu estava decidindo entre um iogurte e outro (que ato mais banal, mais automatizado), quando olhei pra mulher ao meu lado comparando preços dos queijos. De repente me veio o seguinte pensamento: ela tem uma casa, pensei. Essa casa tem gavetas cheias de objetos que contam sua história. Fotografias em molduras, tem um lado preferido da cama, uma caneca favorita para o café da manhã. Pessoas que a amam de um jeito que só elas sabem amar, e pessoas que ela ama de volta com uma intensidade que eu jamais conseguiria imaginar. Preocupações que a mantêm acordada às três da manhã, pequenas alegrias que a fazem sorrir sozinha na rua, situações que só ela presencia e ninguém mais conhece, não pelo mesmo olhar e sentido.
Ali, entre iogurtes e queijos, refleti rapidamente sobre a simultaneidade absurda de todas essas vidas acontecendo ao mesmo tempo. Enquanto eu escolho entre o natural ou de morango, ela pondera se vale a pena gastar o dobro no queijo que vai fazer seu sanduíche de amanhã ter um gosto que a lembre da infância.
É um pensamento que deveria ser libertador, essa descoberta de que somos todos protagonistas de nossas próprias histórias, que ninguém é coadjuvante na vida real. Mas às vezes ele me paralisa. Porque se cada pessoa carrega um mundo inteiro dentro de si, como é que eu consigo processar a magnitude disso? Como é que eu caminho pela rua sabendo que cada janela acesa representa sonhos e pesadelos, esperanças e decepções, amores e desamores acontecendo simultaneamente?
O que mais me impressiona é a revelação da nossa solidão fundamental e ligação profunda ao mesmo tempo. Cada pessoa é uma ilha de consciência inacessível. Eu nunca vou saber realmente como é ser você, como é carregar seus medos específicos, como é ver o mundo através dos seus olhos particulares. Mas ao mesmo tempo, há algo que nos une nessa condição de sermos todos seres conscientes navegando pela mesma existência misteriosa, todos tentando dar sentido ao mesmo caos básico de estar vivo.
Na minha vida, eu sou a protagonista absoluta - cada decisão minha tem seu valor, cada sentimento meu tem importância, cada dia meu tem significado. Mas na vida da mulher do supermercado, eu fui apenas uma figura borrada escolhendo iogurte, alguém que ela talvez nem tenha notado, uma presença tão irrelevante quanto o som do ar-condicionado ou o anúncio promocional no alto-falante.
Isso é libertador, porque me lembra que meus erros, minhas vergonhas, meus momentos um tanto quanto ridículos são muito menos significativos para o mundo do que minha mente autocentrada gosta de imaginar. Se eu tropeçar na rua, pra mim vai ser um evento que vou remoer com constrangimento por semanas. Já pra quem viu, será apenas um segundo de distração antes de voltarem para suas próprias preocupações urgentes.
Existe algo de melancólico nessa percepção, mas também algo de consolador. Melancólico porque revela como somos irremediavelmente sozinhos em nossas próprias experiências - ninguém vai sentir exatamente o que sinto, ninguém vai ver exatamente o que vejo. Mas consolador porque me lembra que não sou a única a carregar esse peso da consciência, a responsabilidade estranha de ser alguém específico num mundo cheio de outros alguéns igualmente específicos.
É também uma forma de compaixão involuntária. Quando você realmente absorve que cada pessoa tem uma vida interior tão rica quanto a sua, fica mais difícil ser cruel, mais difícil dispensar alguém como irrelevante. Aquela pessoa que te cortou no trânsito talvez esteja correndo para o hospital ver alguém que ama. A atendente mal-humorada talvez tenha passado a noite acordada cuidando de uma criança doente. O vizinho barulhento talvez esteja comemorando a única coisa boa que aconteceu com ele em meses.
Não é que isso justifique tudo, claro, ou que devemos aceitar qualquer comportamento em nome dessa compreensão expandida, mas muda algo na forma como vemos os outros, adiciona camadas de possibilidade onde antes havia julgamentos sumários.
Me lembro que durante a pandemia, isolada em casa, eu olhava todos os dias, várias vezes, do alto da cobertura onde eu morava, os prédios ao meu redor. Cada janela, uma célula de vida. Atrás de cada um daqueles retângulos havia alguém vivendo: alguém fazendo o almoço, ou assistindo televisão, ou discutindo ao telefone, ou chorando sozinho, ou simplesmente existindo naquele momento específico que nunca mais se repetirá exatamente igual.
Que responsabilidade estranha é essa, existir cercada de tanta vida acontecendo simultaneamente. Como é que faço pra honrar essa multiplicidade sem me perder nela? Como é que mantenho minha própria narrativa clara sem descartar a importância das narrativas alheias?
Uma educação sentimental sobre nossa própria insignificância relativa e nossa importância absoluta ao mesmo tempo, é o que percebo. Relativa porque somos apenas uma entre bilhões de consciências caminhando por aí. Absoluta porque, para nós mesmos, somos o único ponto de vista que realmente conhecemos, a única vida que verdadeiramente vivemos.
É uma tensão que não se resolve, uma contradição que não se desfaz, e pode ser que justamente nessa tensão more a beleza estranha de estar vivo - nesse lugar impossível entre ser tudo e nada, entre ser o centro e a periferia, entre importar imensamente e não importar nada.
Mesmo em nossas experiências mais íntimas e aparentemente únicas, estamos conectados por fios invisíveis de humanidade compartilhada.
que texto mais que maravilhoso! Estou extremamente apaixonada por como você mergulhou nessa palavra. Depois que conheci Sonder, não consegui parar de pensar sobre. Vivemos em uma verdadeira biblioteca. Cheia de histórias diversas, ricas e únicas. Todo mundo é o próprio escritor e protagonista da sua. Mais uma vez, preciso dizer: seu texto está lindíssimo e profundo, Tati. 🤍
nós q sonhamos com uma tatuagem sonder