Rascunhos demais, confiança de menos
Acumulo mais rascunhos do que inspiração e coragem de colocá-los no mundo
Eu poderia listar aqui, sem nem precisar pensar muito, pelo menos 18 textos inacabados que estão espalhados entre as notas do meu celular e o meu Substack. Dezoito é um número conservador, se eu realmente fuçasse as entranhas desses arquivos, provavelmente encontraria mais.
Ali repousam ideias que começaram promissoras mas nunca chegaram ao ponto final. Algumas morreram de inanição, outras foram sufocadas pelo perfeccionismo. Outros estão há tanto tempo ali, me encarando, que já fazem parte da paisagem da minha culpa. Muitas foram vítimas da autocrítica implacável que me acompanha desde que me entendo por gente.
O rascunho é a terra do meio, um lugar onde tudo pode existir sem precisar ser definitivo. Um texto inacabado não tem compromisso com a perfeição, e talvez por isso eu os acumule tanto. Eles me oferecem uma espécie de refúgio, um limbo onde a minha escrita não precisa enfrentar o olhar dos outros e nem o meu próprio.
Todos começaram com uma faísca de inspiração, aquela ideia que parece urgente, brilhante, impossível de ignorar. O instante exato em que começo a duvidar se aquilo vale a pena, se está bom o suficiente, se merece ser lido, em que eu mesma me torno minha primeira e mais impiedosa leitora, desmantelando o texto antes que ele tenha tempo de existir.
Em algum momento, eles ficaram pelo caminho. Alguns porque me pareceram ruins demais depois de um tempo. Outros porque exigiam mais de mim do que eu estava disposta a dar. E alguns, eu confesso, porque tive medo do que poderiam pensar.
O engraçado, talvez trágico, é que a única coisa que me fez sentar para escrever hoje foi justamente essa coleção de rascunhos abandonados. Como se eles estivessem me encarando em silêncio, esperando que eu dissesse alguma coisa sobre a existência deles.
Costumo dizer que os rascunhos são meus textos antes de serem contaminados pela minha própria expectativa.
Eu sempre fui uma pessoa que escreve pra entender o que sente. Mas ironicamente, quanto mais importante um texto parece ser para mim, maior a chance de que ele nunca veja a luz do dia. O perfeccionismo é um monstro que come palavras antes que elas possam ser ditas. A autocrítica excessiva, essa voz que diz que nada do que eu escrevo é bom o suficiente, funciona como uma tesoura afiada cortando frases inteiras antes mesmo que elas se firmem na página.
Terminar um texto significa entregá-lo ao mundo. Significa que ele deixa de ser uma possibilidade e se torna algo fixo, sujeito a críticas, interpretações, silêncios constrangedores. Enquanto está no rascunho, ele é potencial puro. Ainda pode ser brilhante. Ainda pode ser qualquer coisa.
Mas a perfeição é um mito cruel. Sei disso racionalmente, mas na prática continuo presa na ideia de que poderia ter escrito melhor, escolhido palavras mais precisas, encontrado um final mais impactante. O problema é que essa busca pelo “melhor” frequentemente me paralisa. E quando percebo, o texto já virou mais um para a pilha dos que nunca serão lidos por ninguém.
Olhando textos alheios, tudo parece tão mais fluido, mais certeiro. Não vejo as dúvidas, os cortes, as versões que nunca saíram do rascunho. Só vejo o resultado final e comparo com o meu processo inacabado. E é assim que me convenço de que o meu nunca será tão bom quanto.
Eis aqui mais um fato sobre mim: não tenho só bloqueios criativos, eu tenho bloqueios de permissão pra falhar.
A autocrítica, quando saudável, é necessária, mas existe uma linha tênue entre revisar para melhorar e revisar para nunca terminar, e sei que a atravesso o tempo todo.
Apesar de tudo, gosto dos meus rascunhos. Eles são a prova de que eu tentei, mesmo quando não consegui chegar ao fim. São as versões de mim que existiram por um momento, que tentaram se transformar em algo, que quase foram.
O rascunho é um território livre. Nele posso errar, mudar de opinião, experimentar muitas coisas em um só lugar. Posso existir sem precisar me definir.
Pra mim, existe uma certa melancolia em abrir um rascunho antigo. É como abrir um diário meu de tempos atrás e não reconhecer quem o escreveu. Algumas ideias já não fazem mais sentido, outras parecem esperar pacientemente que eu finalmente as escreva “direito”.
O tempo transforma o que eu escrevi, mas mais do que isso, transforma a pessoa que eu era quando escrevi. Eu me deparo com versões passadas de mim mesma — algumas esperançosas, outras exaustas, todas tentando encontrar palavras para algo que, no fundo, talvez nunca tenha tido uma resposta.
E é aí que entra o medo do julgamento. Porque se eu escrever e nunca publicar, tudo continua sendo um segredo entre mim e a tela. Quantas vezes você já silenciou sua própria voz porque achou que não era boa o suficiente? Quantas ideias suas morreram antes de terem a chance de respirar? Textos nunca viram a luz do dia porque o medo falou mais alto do que a vontade de compartilhar? A gente acaba se convencendo de que não vale a pena antes mesmo de tentar
Eu quero escrever sempre, mas nem sempre me sinto inspirada. A ideia de que a escrita depende de um momento mágico de inspiração é bonita na teoria, mas na prática, a ânsia de colocar palavras no mundo existe mesmo quando a inspiração não vem.
O problema é que essa urgência de escrever muitas vezes esbarra em algo maior: a frustração de não encontrar as palavras certas, de não sentir que aquilo que sai da minha cabeça corresponde ao que eu queria dizer.
Pior ainda é que essa hesitação não se limita à escrita, transborda pra todas as áreas da minha vida.
Muitos diálogos ficaram na ponta da língua e nunca foram ditos, projetos foram interrompidos ou nem mesmo iniciados por medo de não serem bons o bastante, versões de mim mesma ficaram para trás porque eu não tive coragem de torná-las definitivas.
A ironia disso tudo é que, apesar de toda essa paralisia criativa, eu continuo escrevendo. Talvez porque eu precise mais da escrita do que ela precisa de mim. Talvez porque, no fundo, não importa quantos rascunhos fiquem pelo caminho, a verdade é que cada um deles foi necessário para que eu chegasse até aqui.
Acho que talvez essa tenha sido a minha lição ao tentar dar forma aos meus próprios questionamentos: os textos que nunca termino ainda fazem parte da minha escrita. Eles não são fracassos, nem desperdícios. São tentativas. E às vezes, tentar é tudo o que podemos fazer.
Meus rascunhos não são só histórias inacabadas; são pedaços vivos do que senti, do que sonhei. Talvez eles não precisem ser mais do que isso, e a função deles seja lembrar que o valor de criar não está em sua versão final, mas no próprio ato.
O qur me assusta é a sensação de que eles dizem mais sobre mim do que os textos que realmente publico. Revelam a minha própria bagunça antes da ordem, a minha própria confusão antes da clareza.
Às vezes me pergunto se a escrita é algo entre a necessidade de dizer e o medo de ter dito. Entre a ânsia e a paralisia. Escrever é ao mesmo tempo libertação e exposição, um ato de coragem e de covardia. Porque cada texto terminado significa abrir mão de algo: da ilusão de que ele poderia ter sido melhor, do conforto do inacabado, da segurança da nossa gaveta interior.
No fim das contas, escrever nem sempre é sobre publicar. Muitas vezes é só sobre dar um lugar para aquilo que insiste em existir dentro da gente. Eu sempre achei que precisava terminar tudo o que começava, mas acho que algumas coisas tenham nascido para ficar pela metade, e ainda assim serem inteiras de algum jeito.
Meus rascunhos podem nunca ser lidos, mas eles me leram primeiro. Isso já é uma forma de contar uma história, não?
Escrever sempre, mas sem sempre me sentir capaz de terminar. Esse é o ciclo. E no meio dele, minha coleção infinita de esboços.
Não prometo que vou publicá-los ou finalizá-los algum dia, mas talvez eu aprenda vê-los com menos julgamento e mais carinho. Afinal eles são imperfeitos, incompletos, mas profundamente meus, e isso já é alguma coisa. Não, isso é muita coisa.
eu tenho um caderninho que levo pra cima e pra baixo pra anotar as ideias urgentes, "brilhantes". achei que seria uma boa maneira de não deixar nenhuma semente de texto escapar da minha vista, mas virou um algoz. eu olho pro caderninho, ele me olha de volta com deboche pela minha culpa por não ter coragem de desenvolver o que eu coloquei ali. algumas ideias são bestas, mas algumas têm um potencial que eu não quero estragar com uma execução insuficiente, falha. a autocrítica excessiva é um pesadelo.
Que texto lindo! Me incentivou a publicar alguns textos que deixei nos rascunhos pois não passaram no meu teste de qualidade rsrsrs