A cultura da vergonha intelectual nos quer burras
Quanto menos sabemos, mais fáceis somos de controlar
aviso importante: este texto pode causar efeitos colaterais como pensamento crítico, vontade de ler mais e resistência à manipulação. em caso de dúvida, consulte um livro.
existe uma guerra silenciosa acontecendo. ela não se dá em manchetes ou nas ruas, mas dentro das nossas cabeças. talvez você já tenha sentido isso: uma hesitação antes de dizer que está lendo um livro difícil, o receio de mencionar um autor que poucos conhecem, o medo de parecer pretensioso por gostar de um filme que ninguém ao seu redor assistiu. nos últimos anos, tornou-se quase vergonhoso demonstrar que se sabe demais.
o que antes era motivo de admiração virou motivo de chacota. ser culto virou um problema de personalidade. saber muito, gostar de aprender, demonstrar interesse por algo além do que está na superfície — tudo isso passou a ser tratado como arrogância. “nossa, que pretensiosa!” — tradução livre: você ousou ter vocabulário.
dizem que estamos na era da informação, mas nos pedem para saber cada vez menos. a era da informação chegou e, ironicamente, ninguém quer que você saiba demais. ler pouco, pensar menos, consumir rápido. quando alguém tenta ir além, é imediatamente desacreditado. virou hábito usar a palavra “pretensioso” como forma de desarmar qualquer conversa que vá além do básico.
mas quem se beneficia quando desprezamos o conhecimento? quem ganha com a nossa ignorância?
a vergonha intelectual não surge do nada. ela é um projeto. quanto menos sabemos, mais fáceis somos de controlar. mais simples é nos vender qualquer ideia, nos convencer de qualquer coisa, nos fazer acreditar que não temos direito de questionar.
durante séculos, o conhecimento foi privilégio de poucos. livros foram queimados, escolas foram fechadas, ideias foram censuradas. mas agora, o controle é mais sutil. ninguém precisa proibir nada — basta fazer com que as pessoas sintam vergonha de querer aprender.
e funciona.
o discurso começa pequeno: piadas sobre quem usa palavras difíceis, influenciadores dizendo que livros têm palavras demais, gente afirmando que ler ficção é perda de tempo. eles querem que você leia, mas só as legendas do tiktok. devagar, a ideia de que saber é feio se infiltra na nossa cultura.
até que, um dia, nos convencemos de que pensar demais é um problema.
mas o que pode haver de mais bonito do que tentar entender o mundo?
ser curioso é o que ainda nos distingue das máquinas. é o que nos permite imaginar outras vidas, sentir o outro, sonhar com futuros diferentes. e se existe algo que nos torna verdadeiramente livres, é a capacidade de compreender.
quando zombam de uma mulher por ler mais de vinte livros por ano, não é só uma piada. é um recado. um aviso de que ultrapassamos o limite do que nos foi permitido.
sempre houve um medo do conhecimento feminino, porque uma mulher que sabe demais é uma mulher que não aceita qualquer resposta, que não se contenta com pouco, que não pode ser facilmente manipulada. disseram às nossas mães e avós que inteligência era falta de feminilidade. agora, dizem a nós que é pretensão. mas no fundo, a mensagem é a mesma: encolha-se.
o medo da mulher que pensa atravessa séculos. no passado, ele queimava bruxas. perseguia filósofas. trancava escritoras em asilos. mulheres que pensam demais sempre acabam queimadas. no passado, em fogueiras. hoje, nos comentários das redes sociais.
em 1929, Virginia Woolf escreveu: “é fatal para uma mulher escrever como uma mulher deve escrever.”
antes dela, Mary Wollstonecraft1 ousou dizer que mulheres deveriam ter acesso à educação formal. isso no século xviii, quando esperar que uma mulher fosse mais do que um adorno social já era um ato revolucionário. muitos a consideram a primeira escritora feminista, e seus textos foram uma influência essencial para os movimentos que viriam depois. mas, por muito tempo, sua obra foi ignorada em favor de sua vida pessoal: suas relações não convencionais, seus amores, seus erros. enquanto suas ideias eram apagadas, seu comportamento era julgado.porque uma mulher brilhante pode até existir — desde que passem mais tempo analisando sua vida do que lendo seus livros.
mais recentemente, Clarice Lispector dizia que muitas vezes se sentia “como se estivesse saindo de uma jaula”, apenas por ousar existir com pensamento próprio.
Sylvia Plath foi chamada de exagerada por traduzir a dor feminina em palavras e escreveu: “o pior inimigo do pensamento da criatividade é duvidar de si mesmo.”
mas não são só as mulheres de séculos passados que enfrentaram isso. ainda hoje, quando uma mulher se interessa por filosofia, é desafiada a provar que realmente entende. quando gosta de literatura, dizem que é para impressionar homens. quando estuda ciência, é vista como uma exceção.
e sim, sempre vai ter alguém dizendo que só fizemos isso para impressionar um homem.
nós mulheres mulheres não devemos ter vergonha de nós interessarmos por coisas que a sociedade ainda insiste em rotular como “de homem”. não só filosofia, como citei anteriormente, mas por tecnologia, finanças, ciência, política, engenharia—qualquer área pode ser nossa se quisermos.
o machismo estrutural tenta nos fazer acreditar que certos espaços não nos pertencem, mas a verdade é que eles nunca foram exclusivos, foram apenas negados a nós por tempo demais.
conhecimento é a única coisa que não podem tomar de nós, e quanto mais aprendemos, mais desmontamos essa estrutura que ainda tentam todo custo manter de pé.
precisamos falar também sobre mulheres que sociedade igualmente insiste em subestimar: a que gosta de maquiagem, usa roupas coloridas, fala de moda ou parece dócil e ingênua demais para ser levada a sério.
dizem que inteligência e feminilidade não combinam, como se o direito de ser ouvida viesse com um dress code neutro e discreto. uma personagem da ficção que mostra bem isso é Elle Woods, de “Legalmente Loira”.
Elle foi aprovada em Harvard de salto alto, roupa pink e um laptop brilhante — e foi imediatamente subestimada.
não importava que ela tivesse tirado uma nota impecável no LSAT2 ou que tivesse um talento natural para argumentação. para todo mundo ali, ela era só uma garota fútil brincando de ser inteligente.
mulheres que gostam de moda, que falam de beleza, que são femininas demais — essas não podem ser levadas a sério, certo?
mas elle não só provou que inteligência e feminilidade não se anulam, como mostrou que não existe uma única maneira “aceitável” de ser inteligente.
ela se atreveu a ser genial e usar rosa ao mesmo tempo.
mas nós não vamos.
seguimos lendo, estudando, debatendo, nos aprofundando. seguimos escrevendo, mesmo quando dizem que ninguém quer ouvir o que pensamos. seguimos ocupando espaço nas universidades, nas livrarias, nas bibliotecas, nos grupos de discussão.
seguimos memorizando poemas inteiros, citando autoras esquecidas, desenterrando ideias que tentaram esconder de nós. seguimos nos apoiando, como fez toni morrison ao dizer que, diante da opressão, “se há um livro que você quer ler e ele ainda não foi escrito, então você deve escrevê-lo.”
e seguimos existindo.
com a força de quem sabe que uma mente livre é a maior ameaça a qualquer sistema que nos queira caladas. por isso, essa é uma chamada para resistência.
não peça desculpas por ser inteligente. não peça desculpas por ter vocabulário. não peça desculpas por gostar de palavras difíceis. conhecimento não precisa ser raso para ser acessível.
não tenha medo de se aprofundar. não se cale para parecer mais agradável. não tenha vergonha de carregar um livro para qualquer lugar que seja, de citar um filme cult numa conversa, de decorar um poema só porque gosta de como ele soa na sua boca.
a pretensão nada mais é do que a vontade de ultrapassar o que nos disseram que era suficiente, e não existe nada mais radical do que se recusar a encolher a própria mente.
não deveria existir vergonha em querer saber mais.
o que você sabe pode te proteger, mas o que você ainda não sabe pode te libertar.
ei, você que leu até aqui, obrigada! se gostou, deixa um comentário ou um coração? vou amar saber o que achou!
escritora, filósofa e uma das fundadoras da filosofia feminista.
Law School Admission Test é um exame padronizado que avalia habilidades de leitura, raciocínio e escrita; um dos requisitos fundamentais para se candidatar a faculdades de direito nos Estados Unidos, Canadá e outros países.
sempre me incomodei com as mocinhas nas redes sociais respondendo com "me explica, sou burra"... eu sempre tive um medo brutal de ser taxada de burra.
e acrescento, ao seu excelente texto, que as mulheres não devem ter vergonha de se interessar por coisas que não são associadas ao feminino (em termos de machismo estrutural), como matemática, tecnologia, esportes, economia, política.
conhecimento é a única coisa que não podem tomar de nós.
É preciso normalizar ser uma esquisitona e não dar a mínima para o que vão pensar de você.
Acho que às vezes as pessoas se prendem em gaiolas invisíveis. Ninguém liga para ninguém, ninguém se importa. Às vezes é coisa da nossa cabeça e se não for, dane-se.
Faça o que quer fazer, como quiser, onde quiser e seja feliz. Alguns vão te acompanhar, outros não, mas… quem se importa?