O band-aid da vida adulta
Nem toda ferida pode ser coberta, mas toda dor merece cuidado - #33
Enquanto reorganizava a caixinha de medicamentos hoje pela manhã bem cedinho, um pequeno detalhe me chamou atenção. Entre os analgésicos, antitérmicos e alguns outros remédios, lá estava. Minha mão foi até ela quase por instinto. A vida tem dessas de trazer epifanias em momentos inesperados…
Observei com os olhos atentos aqueles band-aids estampados, infantis, que meu marido comprou para nossa filha na última vez que foi à farmácia. Me lembrei dela, que nesse momento está na creche, e do quanto ela ama esses “curativos” — como costumo chamá-los carinhosamente quando brincamos juntas.
Ela cola nos joelhos, nos cotovelos, nos dedos, mesmo sem machucado algum. E também nos braços dos bonecos, como se estivesse cuidando deles. Às vezes, cola em mim também. No meu braço, na minha perna, na testa. Me olha com aqueles olhos curiosos que dizem, cheios de certeza: “Pronto, mamãe. Já sarou.”
Por um instante, acredito.
É inevitável lembrar de mim mesma quando criança. Eu fazia exatamente a mesmíssima coisa! Andava pela casa coberta de band-aids, inventando feridas para depois curá-las. Minhas bonecas também estavam sempre “machucadas”, e eu era a responsável por consertá-las. Naquela época, era tudo simples: um pedacinho de plástico sobre a pele e a dor — real ou imaginária — simplesmente desaparecia. A infância nos ensinou que todo machucado sara, mas a vida adulta nos prova o contrário. Algumas feridas não fecham, mas o amor ameniza o ardor.

Hoje, adulta, percebo que continuo tentando colar band-aids onde dói. Mas agora os machucados são invisíveis, e ninguém mais me pergunta onde foi que me feri. O que machuca mais: a ferida ou o fato de ninguém perguntar sobre ela? A vida adulta tem essa crueldade silenciosa: as dores continuam, mas as pessoas esperam que a gente lide com elas sozinhas.
Aprendi a esconder as feridas de forma discreta. Sorrir quando estou cansada. Dizer que está tudo bem quando, na verdade, sinto um peso no peito que não sei nomear. Criar pequenas rotinas de autocuidado que, no fundo, são apenas tentativas desesperadas de estancar algo que não para de latejar. O café quente antes do trabalho, uma das minhas playlists favoritas que coloco pra tentar silenciar a mente, a sensação de água morna tocando a pele no banho depois de um dia longo, assistir uma romcom dos anos 2000 ou uma das minhas séries do coração, o silêncio confortável ao lado de alguém especial… Resumindo: pequenos remendos.
Mesmo crescida, ainda busco pequenos curativos para a alma, tentando amenizar as dores invisíveis que carrego comigo.
Ao segurar aquela caixinha de band-aids infantis, senti um nó na garganta. Porque, no fundo, tudo o que eu queria era que fosse simples outra vez. Que qualquer dor pudesse ser coberta por um adesivo colorido. Que eu ainda pudesse acreditar que cuidar de um machucado é só uma questão de protegê-lo por um tempo, até que cicatrize por conta própria. Quem dera existissem band-aids para cicatrizar saudades, ausências, despedidas inesperadas, palavras que nunca foram ditas, promessas que se perderam no tempo.
Passamos a vida tentando encontrar um band-aid para as dores da alma, colando sorrisos sobre cicatrizes e seguindo em frente, como quem cobre feridas antigas na esperança de que parem de latejar.
Mas sei que não é assim. Algumas dores não somem, só se acomodam dentro da gente. Algumas feridas não fecham, apenas aprendemos a conviver com elas. Com quase 30 anos, percebo talvez a vida adulta seja isso: seguir em frente apesar dos cortes, aprender a lidar com as cicatrizes sem a ilusão de que um simples curativo pode dar conta. Nem todo machucado precisa de um curativo, mas toda dor precisa de cuidado.
A verdade é que ninguém nos ensina como se curar do que não se vê com os olhos do rosto. Somos treinados para seguir em frente, para não reclamar tanto, para acreditar que o tempo resolve tudo. Mas o tempo não apaga dores, só as esconde debaixo de novas camadas de rotina, responsabilidades e tentativas de distração.
Tem dores que um simples curativo alivia, mas outras só se curam com tempo e afeto.
Ainda assim, me pergunto como seria se tratassem nossas feridas, já adultos, da mesma forma que fazem com as crianças. Se, ao perceberem nossa dor, se ajoelhassem diante de nós, olhassem em nossos olhos com ternura e dissessem: “Me mostra onde dói.”
Se alguém, com paciência, soprasse nossas feridas invisíveis, colasse um curativo simbólico sobre elas e garantisse, com aquela certeza que só quem ama tem, que vai passar. Porque sempre passa, né? Pelo menos, era o que nos diziam quando éramos pequenos. Acolher alguém pode ser o curativo que impede uma alma de sangrar em silêncio.
Mas crescemos e, de repente, ninguém mais nos segura no colo quando choramos.
Ninguém mais limpa nossas lágrimas com as costas da mão e nos lembra, com voz suave, que logo, logo a dor se acalma. No mundo adulto, espera-se que a gente se cure sozinho, que levante sem reclamar, que esconda os joelhos ralados de dentro pra fora, mas às vezes tudo o que a gente queria era um pouco dessa delicadeza. Alguém que entendesse que, mesmo sem cortes aparentes, tem dias em que tudo dentro da gente está esfolado.
Quando minha filha voltar da creche, ela pode me pedir um band-aid, mesmo sem machucado algum. Vou ajudá-la a colar um no joelho, outro no braço da boneca, e vou rir com ela.
Quando ela colar um em mim, quero acreditar, ainda que por um instante, que isso pode realmente me curar, ou fazer doer um pouquinho menos.
Se esse texto te tocou de alguma forma, me conta nos comentários: quais são os seus “band-aids” pras dores da vida adulta? Vamos trocar ideias, memórias e quem sabe até rir um pouco das nossas tentativas de seguir em frente. Ah, e se quiser compartilhar esse texto com alguém que precise de um curativo simbólico hoje, fique à vontade.
Fique bem, cuide das suas cicatrizes com carinho e não esqueça: até os machucados invisíveis merecem atenção.
Tatiane, entenda, você é a minha favorita! Temos partes tão parecidas, é um alívio te ler e ver que uma parte minha também tem companhia em partes de outras pessoas! 💗
realmente estava precisando desse texto. começo da vida adulta, e estou aprendendo a lidar com meus próprios dodóis, e confesso: está sendo difícil. obrigado por suas palavras 🧡